Filosofia de garagem

A garagem do meu prédio ainda me faz suar quando sábado, noite enorme tudo dorme, todos os carros foram guardados me cabendo uma área mínima de manobra e a vontade de remoção imediata daquela pilastra de merda. A sensação de estar num filme bonito em que a W3 é só minha e eu posso avançar com uma bela trilha sonora diante da intermitência dos sinais acaba quando vejo que sim, todos os carros que poderiam estar ao redor estão e os vizinhos optaram por puxar os carros para frente, comendo preciosos centímetros do já diminuto espaço. Eu tiro o casaco, abro os vidros, agradeço ao inventor da direção hidráulica, penso que estou treinando a panturrilha, xingo a pilastra e, nesse movimento, o carro entra no lugar e isso vai parecendo menos dramático pela repetição, apesar da história de que um dia farei isso de olho fechado não parecer prudente.

Namorando o resultado enquanto recolhia acampamento, um casal entra, estaciona em três segundos (a vaga deles estava livre de qualquer tipo de barreiras, observei) e espera pelo elevador comigo. Puxei um “boa noite”, a resposta foi o suficiente para perceber que eles estavam bêbados (além de fazer a vaga em três segundos, esse cara faz bêbado?). Tive vontade de rir do casal bêbado da vaga livre, pois eles estavam dando risadas legais de bêbados tentando disfarçar sobriedade para a vizinha da vaga presa que visivelmente não estava chegando da balada com livro na mão e resto de merenda do trabalho. Torci para o elevador chegar logo, devo estar ficando meio brasiliense, mas aquilo começou a ficar constrangedor. Foi então que encostei acidentalmente no chaveiro de Stitch que ganhei de um amigo querido porque batizei o carango com o nome do personagem da Disney pela notória semelhança física entre o formato das orelhas de um e os retrovisores de outro. Acontece que o chaveiro do Stitch ao ter o botão acionado acende os olhos e começa a falar “I love you” indiscriminadamente numa voz bastante peculiar. O casal finge que não tem nada acontecendo e eu não me contenho no riso que já estava preso: “É meu chaveiro blá blá blá…”. Eles esboçam um sorriso muito mixuruca que me faz pensar que por aqui só o “boa noite” já pode exceder.

Atravesso o corredor para o meu bloco e cumprimento Seu Orlando, o porteiro velhinho que tem a concisão por hábito:

– Hoje essa vaga estava suada, Seu Orlando! Custei, mas deu certo!

Já esperava pelo “É, boa noite!” quando meu coraçãozinho se encheu de amor ao ouvir de um jeito manso:

– Quando a gente conquista o mais difícil, fica melhor ainda.

Após conquistar uma sentença como essa de Seu Orlando, os vizinhos deixaram de vir ao caso e tudo me pareceu melhor ainda.